5.6.08

Descontextualização

Aproveitando que ele veio por aqui (The) esses dias, algumas palavras que eu gostaria de ter dito:

Por: Frei Betto *

Na cabeceira da cama de hotel em qualquer metrópole ocidental, as indicações do que pode interessar ao hóspede: cinemas, teatros, night-clubs, museus... e horários de missas e de cultos nas principais igrejas. Como no jogo dos coelhos rodeados de casinhas, propõe-se que cada um se meta num buraco. Fissurados pela especialização, o advogado não sabe como cuidar da própria gripe e o médico ignora como regular o motor de seu carro. Suprimidas as aulas de religião, na nova geração há quem pense que Davi foi um lutador de box que derrotou o gigante Golias num ringue de Manhattan e que Gênesis não passa de um espetáculo de metaleiros britânicos.
Imbecilizados pela viseira da descontextualização - sem critérios que permitam estabelecer a relação entre o sorriso do Presidente dos Estados Unidos e o choro faminto de uma criança no Brasil, na India ou no Zaire - ficamos como o garoto que olha perplexo para as peças do quebra-cabeças amontoadas na caixa. Aprendemos nos livros e nas aulas que somos um nó de relações sociais ou, como dizia Ortega y Gasset, "eu sou eu e minhas circunstâncias", mas o sistema insiste em nos transformar em amebas sem circunstâncias, sem relações e sem história.
Se não nos podem arrancar fisicamente do contexto, já que somos da espécie dos animais dependentes, ao menos se esforçam por nos isolar psíquica e politicamente. Quanto mais ignorarmos o contexto no qual estamos inseridos, tanto melhor para aqueles que detém o poder sobre o status quo. Como são inteligentes, jamais dirão as coisas dessa maneira. Dirão que nos querem ver felizes. E que a preocupação com a realidade circundante só traz infelicidade: catástrofes, fracassos, violências, corrupções. Meta-se em seu casulo e espere resignadamente o momento de se transformar em borboleta. Quem aceita, usufrui da felicidade da lagarta, na rastejante alegria de sonhar com seu borboletante futuro.
Em socorro daqueles que insistem em permanecer com os olhos abertos, mas com preguiça de pensar, vem o oráculo sagrado da TV e, a seu modo, faz as conexões, induzindo-os a crer que fora do livre mercado - onde o homem se afirma como o lobo do homem - não há salvação. E quem nem sequer possui a liberdade de participar do mercado, que se meta na economia informal, assuma a contravenção ou faça de seu sofrimento neste mundo um meritório recurso de conquista da salvação eterna. Um pouco de ópio talvez nos convença de que Deus quer nos salvar deste mundo, induzindo-nos a ignorar que Ele veio nos libertar neste mundo, resgatar o próprio mundo e integrar toda a Criação na gloriosa ressurreição do Filho do Homem.
Alguns têm a sorte de encontrar um fio de Ariadne. Os cristãos buscam na Bíblia o espelho que lhes permite decifrar os enigmas da história. Encontram em Jesus de Nazaré o sentido mais radical e profundo de suas existências. Os marxistas, ainda que abalados pelo "terremoto" do Leste europeu, apegam-se às suas análises de classes e descobrem que ser revolucionário é bem mais difícil que do professar a teoria da revolução. Outros, menos universais e pouco preocupados com os destinos da humanidade, ingressam na primeira seita ou grupo que lhes alivie o coração e assegure a salvação. Ou entram para uma equipe de xadrez, uma ginástica aeróbica ou um vídeoclube, reduzindo o mundo às paredes que o cercam e às veleidades individuais. Se há favelas e conflitos raciais, que cuidem os políticos. Ou, quem sabe, tais fenômenos não fazem parte da paisagem humana, como a seca do Nordeste ou as enchentes em épocas de chuva, com os quais devemos nos acostumar!... A razão cínica cumplicia a omissão, como se o acaso fizesse parte inelutável da dinâmica da vida.

*Escritor, autor de Típicos Tipos - Coletânea de Perfis Literários (A Girafa), entre outros livros.

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